Ajuda-me a ver.
O AMOR que me despertas pela manhã.

21 de março de 2010

A URGÊNCIA


"Então baixou a pressa.
Não tinha mais um dia a perder, pois embora fosse muito cedo, começou a suspeitar que era também desesperadamente tarde demais. Procurou Betinha, bilhete pronto, escrito com Parker em folha de arquivo. Quero falar contigo amanhã sem falta, na praça, depois da aula.
- Tu sabes? - perguntou Betinha, olho no olho.
Ele disse que sim.
De tardezinha, veio a resposta: Beatriz concordava. Amanhã na praça, sem falta.
- Mas tu sabes mesmo? - Betinha perguntou novamente.
Outra vez, disse que sim. Perguntou se era verdade. Betinha sacudiu a cabeça, que era. Antes de ir embora, ainda falou:
- Olha bem para o pescoço dela. Tem uns caroços aqui, assim, inchados. Aquilo é a doença.
Ele olhou bem, quase meio-dia da manhã seguinte, sentados num banco do centro da praça. Enquanto pedia, trêmulo de amor:
- Beatriz, quero namorar contigo.
Ela apertou contra o peito um livro de História do Brasil:
- Tu é muito criança - disse.
Quase não conseguia olhar para ela. Olhava o chão de pastilhas coloridas no centro da praça. Formavam círculos, quadrados, estrelas grandes e pequenas. Menores ainda, estreletes.
- Mas se eu sou criança - foi dizendo devagar, convincente -, se eu sou criança tu também é, porque só tens doze anos.
- Treze - ela corrigiu. E ergueu o rosto para o sol no meio do céu. Os gânglios inchados quase desapareciam assim. Gân-gli-os, repetiu mentalmente, essa palavra que quase não conhecia.
Espantado, percebeu que Beatriz usava batom. Batom clarinho, mal se notava. Parecia tão divertida e distante que aquela coisa densa, meio suja, dentro dele começou a se contorcer feito quisesse sair para fora. Cobra armando o bote, vômito armado na garganta. Ainda tentava controlá-la, quando insistiu:
- Eu gosto de ti, Beatriz. Eu gosto muito de ti. Eu gosto tanto de ti.
- Pois eu não - ela abaixou os olhos, procurando os dele. Quando encontrou, falou quase sorrindo, como quem dá uma coisa doce, não como quem enfia uma faca afiada: - Gosto só como amigo.
- Como amigo, não me interessa - gemeu.
Devia ser março, porque o sol era tão quente que fazia gotas de suor escorrerem entre as espinhas da cara dele até o lábio superior, onde aquele pêlos escuros começavam a se adensar. Sua cara de macho em preparação devia estar nojenta como a de um bicho. Mais tarde, bem mais tarde, se lhe perguntassem, mas ninguém saberia, poderia explicar que não tinha tido culpa. Foi aquela coisa suja de dentro que subiu descontrolada garganta acima, para atravessar a língua e os dentes até arredondar-se de repente na pergunta cruel que jogou no ar morno de meio-dia (e Sol na X, era o destino):
- Beatriz, tu sabe que vai morrer?
Ela levantou. Nem pálida, nem lágrimas nos olhos. Remota, fatídica. Ele levantou também. Só então percebeu que, além do batom, ela usava sapatos de saltinho que a faziam quase dois palmos mais alta que ele. Por trás dela, podia ver a torre da igreja. Talvez uma ou duas palmeiras. A caixa d’água ao longe, muito alta.
O sino começou a bater. Beatriz virou as costas e saiu caminhando,
pescoço erguido, o livro de História apertado contra os seios
tão empinados que, num último golpe, percebeu:
além do batom e dos saltinhos,
Beatriz também usava sutiã.

Beatriz era uma mulher.
E ia morrer."

___________________Caio Fernando Abreu

♥♥Fragmentos de Caio,
que sempre escreveu e retratou,
com alma e coração,
a realidade da vida, de nosso dia-dia.
Por isso digo que viver,
sempre será um de nossos
melhores momentos aqui.♥♥

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